quinta-feira, 9 de julho de 2009

A SOLUÇÃO

“A verdade é que ninguém pode ferir-nos, salvo aqueles que amamos”
Jorge Luis Borges

Não pensem que as coisas são tão simples assim. Não se pode contar uma história impunemente. Há uma cota de sacrifício para cada palavra escrita. Por exemplo, agora todos os meus amigos estão se divertindo. Há pouco um deles ligou perguntando se eu não iria tomar a tradicional cerveja. Desculpei-me dizendo estar muito ocupado. Ao que ele argumentou: ocupado como se hoje à tarde você nem foi ao trabalho, está aí em casa sem fazer nada. Ele não sabe como é difícil não fazer nada. O trabalho meticuloso de dar voltas dentro de si mesmo, num percurso cada vez mais arriscado e perigoso. Não tentei explicar isso para ele, não adiantaria.
Mas esse é um menores sacrifícios. Os maiores são outros. Proporcionalmente superiores à medida que as frases vão sendo construídas. Diariamente, intimamente, na solidão de um corpo. Temo a invasão sorrateira de um substantivo, a mordida instigante de um verbo. Coisas que vão crescendo e se enroscando, e de súbito querem se mostrar vivas, existentes, circundantes.
Há também o silêncio, a ausência, a renúncia. O não dizer que se propaga por toda a página, esperando uma outra construção. Tudo que acontece inesperadamente como um atropelamento. Um corpo que cai. Então é recomeçar, recomeçar.
Não pensem que as coisas são tão simples assim. Não se pode contar uma história impunemente. Há uma cota de sacrifício para cada palavra escrita. Agora mesmo quando saí do quarto tinha tudo pronto na minha cabeça. Liguei o computador e comecei a escrever. Quase que imediatamente o telefone tocou. Alguém do outro lado da linha perguntava se eu não queria um novo cartão de crédito. Anuidade grátis. Um sem fim de vantagens altamente comprometedoras. E como é difícil se desvencilhar dessas situações. A gente diz não e há a insistência. Um novo não e nova insistência. Um não final e a voz do outro lado promete ligar depois para confirmar. Afinal é uma chance imperdível.
As coisas não são tão simples. Por trás de cada palavra há uma sombra. Penso no gesto repetitivo do drible de Garrincha. Parece fácil. O bailado e o corte sempre para o mesmo lado. O zagueiro sabia que era por ali. Todo o estádio sabia que era por ali. E acontecia. Inexoravelmente. O pior da vida é exatamente isso: esperar surpresas onde não há surpresas. O diabo é que nos movimentamos sempre nessa perspectiva, alimentando a esperança de que alguma coisa mude. Garrincha era sábio porque detestava mudanças, fazia o que sabia fazer. E nesse não surpreender, surpreendia.
Cada palavra também pressupõe uma atitude. Não é simplesmente soltá-las ao vento, esperando que cheguem ao seu destino. O perfeito boxeur sabe exatamente onde bater. Estuda meticulosamente o adversário e o distrai com jabs, para finalmente encaixar o soco de baixo para cima na ponta do queixo. É fatal. Não há como ficar de pé. Lembra a implosão de um edifício. Aquela massa informe a cair desajeitadamente. E no chão, a ruína do que um dia foi altivo e belo.
As coisas não são tão simples. Há pouco eu saía do quarto com a história pronta na cabeça. Era sobre um homem desiludido no alto de uma ponte. Um homem sozinho com o mistério da sua existência.
- Que mais posso fazer senão atirar-me nesse rio lodacento.
Pensava o homem no alto da ponte, esperando o momento do desenlace. Já se sentia flutuando no ar depois do salto e tudo se precipitando para baixo numa vertiginosa queda. Ouvia o baque do corpo contra a água, o redemoinho e a lenta descida até o fundo do rio. Provavelmente já deveria estar morto. O impacto seria suficiente para aliviar o peso da vida e libertá-lo definitivamente de todas as suas angústias. A morte.
Passou as mãos nos cabelos ralos como se o gesto fosse suficiente para devolver-lhe a calma. Constatou que as mãos estavam úmidas. Em seguida percebeu que Ele inteiro estava úmido. Suava aos borbotões. Nenhum outro ruído humano abalava o silêncio da noite. Nenhum automóvel se anunciava. Nada que pudesse ser um empecilho ao salto. Nada que pudesse atrapalhar o solitário gesto. Soluçou.
Lembrou-se daquelas pessoas que escolhem as horas mais movimentadas do dia, trepam em um edifício e ficam lá no alto esperando que se forme uma aglomeração na rua. Que chegue o corpo de bombeiros. Que os cinegrafistas se posicionem. Esperam o facho de luz. Os gritos das pessoas apressadas que não querem perder um minuto do espetáculo. No final, desistem de tudo, choram e se lamentam. E voltam satisfeitos para casa depois de se tornarem manchetes de jornais.
Não queria para si esse espetáculo. Por isso, escolheu a hora mais apropriada, a ponte mais alta e o local mais deserto. Até o ponto do salto foi cuidadosamente estudado. Próximo a uma viga bem larga, de modo que Ele dificilmente poderia ser notado por alguém. Ali ficaria minutos, horas e ninguém o aborreceria. Se quisesse poderia optar por outra forma alternativa de morte naquele mesmo local. Tocou a cintura e sentiu o cabo volumoso do trinta e oito que comprara pela manhã. Um tiro na cabeça na beira da amurada provavelmente projetaria o corpo no espaço. Seria um duplo suicídio em um mesmo ato. O tiro e a queda.
O homem no alto da ponte carrega consigo uma história. Amigos, família e uma sucessão de fatos que compartilhou com outras pessoas. Carrega recordações felizes, tristezas, desenganos, erros e acertos. Não é diferente de muita gente. Tem o número de uma identidade, o registro de nascimento. Quando tudo se consumar será lembrado pelo tresloucado gesto. Todos irão indagar as razões que o levaram a tal ato. Dirão que Ele não tinha motivos aparentes. Não estava desempregado. Possuía uma vida organizada. Não bebia. Não era viciado em nenhum tipo de droga.
A interrogação descerá junto com o corpo e repousará no fundo do rio.
A história teria sido essa. Mas as coisas não são tão simples assim. Não se pode contar uma história impunemente.

3 comentários:

  1. Massa, seu blog Assis. Belos textos, virei mais vezes : ]

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  2. um dia quis escrever algo para um amigo meu, mas nunca consegui
    acho que já não preciso

    beijo

    [ainda bem que criaste este blogue, sei de muita gente que te quer ler...]

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  3. "felizes os felizes"

    Jorge Luis Borges



    "os peixes e as crianças" fabuloso este e tantos outros contos...

    tenho teu livro sempre aos olhos.

    forte abraço, irmão.

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