quinta-feira, 9 de julho de 2009

A ÁRVORE DO ESQUECIMENTO

“... além dos estados líquidos e sólidos, porque não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso?!”
Guimarães Rosa

Conta-se que os nativos africanos capturados para se tornarem escravos na América eram submetidos a um ritual que consistia em dar voltas em torno de uma árvore. Os homens davam nove voltas enquanto as mulheres davam sete voltas. O ritual, segundo a cultura local, servia para que os futuros escravos esquecessem as suas origens. Assim, eles não amaldiçoariam as embarcações durante as longas viagens e tampouco se rebelariam contra a situação de opressão. A árvore utilizada para o ritual ficou denominada de “a árvore do esquecimento”.
Recordo esse fato porque ele se relaciona com a nossa história. Também eu ando a dar voltas tentando esquecer o passado. Mas, como acontecia com os escravos, não há como apagar a memória de uma existência. Ainda mais quando ela se impregna por todo o corpo, reaparece sob diversas formas, e surge nos momentos mais inesperados.
Vou citar alguns exemplos. Olhando pela janela do metrô tenho a impressão de que você está no meio dos rostos aflitos que não conseguiram embarcar na estação. O metrô está partindo e você ficando para trás. Outra tortura constante está nas ruas. Tem sempre uma mulher de costas acendendo o cigarro com o mesmo gesto característico. Quando me aproximo e vou tocar-lhe as costas, ela vira-se. Não é você. Uma até chegou a sorrir e perguntou-me se queria fumar. Era extremamente simpática. E tinha os cabelos ondulados que tanto gosto. Mas o desconcerto foi tamanho que fugi desesperado. O fato é que me tornei cativo do teu amor.
Tentei convocar a legião de pessoas que vivem no mesmo estado de opressão que o meu. A idéia era formar o Exército de Libertação do Mal do Amor, o ELMA. Mas foram poucos os que se dispuseram a participar de tal empreitada. E mesmo esses poucos, logo depois se viram assaltados por uma outra paixão e acreditaram estar livres do jugo amoroso. Mal sabem eles que apenas trocaram de feitor. Apenas uns dois ou três, incluindo-me na contabilidade, mantiveram-se fiéis ao seus desafetos da paixão.
Fiéis não é o termo exato. Vício deve ser mais apropriado. Continuamos viciados na rotina de uma outra pessoa. No desenho de um mesmo corpo. Na voz, no cheiro, no toque. Visceralmente dependentes.
Outro dia acordei sobressaltado, acreditando que você estava ao meu lado. Acendi a luz do quarto, percorri desesperado todos os cômodos da casa até chegar a triste constatação da ausência. Como um menino acuado e com medo chorei. Depois, refeito, escutei o disco de Curtis Mayfield que você mais gostava. O velho LP de vinil com People get ready. Li os poemas de Fernando Pessoa que você, como que para apoderar-se de tudo quanto era meu, grifava com marcadores de texto coloridos.
Graças a Deus comprei livros novos. Neles estou livre dos malditos marcadores coloridos. Mas você teima sempre em se anunciar no final de uma narrativa. Alguém disse que todos os enredos se resumem basicamente a quatro situações. Então não há como fugir. Nossa história está presente na maioria dos livros. Aliás, como frisou Maupassant, “o amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo”. Acredito que seria tarefa inútil recompô-la nessas poucas páginas. Não acrescentaria nada. Busco apenas uma espécie de exorcismo amoroso. Escrevo para libertar-me de você.

Um comentário:

  1. "Escrevo para libertar-me de você". Escrever são as minhas asas, o meu voo breve. Por hora estou em cada linha, das sílabas aqui soletradas.

    ResponderExcluir