quinta-feira, 9 de julho de 2009

GENEROSIDADE

“Não gosto de você, amor. Mas não fique triste: não gosto de ninguém. Nem de minha mãe eu gosto.”
Dalton Trevisan


A generosidade é um atributo particular às mulheres. Não sei a quem pertence essa frase. Talvez esteja até sendo original. Embora ache improvável. O certo é que elas nos proporcionam momentos que guardamos pelo resto da vida, e nunca somos capazes de agradecer suficientemente. De modo contrário, quando as cortejamos, quando lhes damos qualquer tipo de prazer elas se derramam em retribuições puras. Particularmente nunca entendi essa generosidade. Bioy Casares disse que as mulheres, embora tenham o vigor do cavalo, se deprimem com tudo. Concordo em parte com a afirmativa. Acho que se deprimem no esforço de nos fazer felizes.
Quem nunca esteve sob os cuidados gentilíssimos de uma delas não sabe do que estou falando. Ser verdadeiramente o homem de uma mulher é tarefa para poucos. Perto delas ainda estamos na idade da pedra. Acreditando que o quadrilátero da cama é o parâmetro ideal da conquista e da sedução. Não nego essa parte substancial. Mas fazer dela o único caminho é trilhar às cegas pela vida.
Constato agora que esse também foi o meu erro. Quando conheci Emília seus olhos tinham o verdor da juventude. Alegria, obstinação e generosidade. Essas eram as suas qualidades principais. Pude provar de todas elas. Às vezes intensamente, às vezes em pequenas partes. Encontramo-nos a primeira vez na faculdade de Ciências Humanas. Ela fazia o curso de Psicologia enquanto eu cursava Filosofia. Apesar disso, o responsável por nossa aproximação foi um poeta. Emília estava sentada sob uma árvore no pátio da faculdade lendo. Senti-me logo atraído pela moça de cabelos castanhos. Ao aproximar-me percebi o título do livro: Paraísos Artificiais. Tinha tudo a ver. Então não pude resistir.
Parei ao lado de Emília e disse: “A mulher é o ser que projeta a mais negra sombra ou a mais clara luz em nossos sonhos”. Ela pousou seus grandes olhos em mim e começou a rir. Não nos separamos mais. Emília me presenteava cada dia de forma nova. Ficamos assim por quatro anos, vinte e dois dias, doze horas e dezoito minutos. Exatamente.
Recordo o encontro derradeiro. Emília vestida em uma saia marrom, a camisa da mesma cor, sem mangas. O cabelo enrolado por trás. Pediu-me que sentasse. Então começou a falar. Disse que eu tinha sido a coisa mais importante que aconteceu em sua vida. Falou outras coisas de que não me lembro. Até que chegou ao ponto substancial: a generosidade. Disse sentir – a tal subjetividade das mulheres – que tinha que abrir mão de mim para que eu pudesse ser feliz. Beijou-me a face e começou a abrir a porta. Foi quando pedi que se voltasse e disparei seguidamente contra o seu corpo. Ainda no chão sussurrou que me perdoava. Emília fazia ali o último gesto de generosidade para me salvar.

A SOLUÇÃO

“A verdade é que ninguém pode ferir-nos, salvo aqueles que amamos”
Jorge Luis Borges

Não pensem que as coisas são tão simples assim. Não se pode contar uma história impunemente. Há uma cota de sacrifício para cada palavra escrita. Por exemplo, agora todos os meus amigos estão se divertindo. Há pouco um deles ligou perguntando se eu não iria tomar a tradicional cerveja. Desculpei-me dizendo estar muito ocupado. Ao que ele argumentou: ocupado como se hoje à tarde você nem foi ao trabalho, está aí em casa sem fazer nada. Ele não sabe como é difícil não fazer nada. O trabalho meticuloso de dar voltas dentro de si mesmo, num percurso cada vez mais arriscado e perigoso. Não tentei explicar isso para ele, não adiantaria.
Mas esse é um menores sacrifícios. Os maiores são outros. Proporcionalmente superiores à medida que as frases vão sendo construídas. Diariamente, intimamente, na solidão de um corpo. Temo a invasão sorrateira de um substantivo, a mordida instigante de um verbo. Coisas que vão crescendo e se enroscando, e de súbito querem se mostrar vivas, existentes, circundantes.
Há também o silêncio, a ausência, a renúncia. O não dizer que se propaga por toda a página, esperando uma outra construção. Tudo que acontece inesperadamente como um atropelamento. Um corpo que cai. Então é recomeçar, recomeçar.
Não pensem que as coisas são tão simples assim. Não se pode contar uma história impunemente. Há uma cota de sacrifício para cada palavra escrita. Agora mesmo quando saí do quarto tinha tudo pronto na minha cabeça. Liguei o computador e comecei a escrever. Quase que imediatamente o telefone tocou. Alguém do outro lado da linha perguntava se eu não queria um novo cartão de crédito. Anuidade grátis. Um sem fim de vantagens altamente comprometedoras. E como é difícil se desvencilhar dessas situações. A gente diz não e há a insistência. Um novo não e nova insistência. Um não final e a voz do outro lado promete ligar depois para confirmar. Afinal é uma chance imperdível.
As coisas não são tão simples. Por trás de cada palavra há uma sombra. Penso no gesto repetitivo do drible de Garrincha. Parece fácil. O bailado e o corte sempre para o mesmo lado. O zagueiro sabia que era por ali. Todo o estádio sabia que era por ali. E acontecia. Inexoravelmente. O pior da vida é exatamente isso: esperar surpresas onde não há surpresas. O diabo é que nos movimentamos sempre nessa perspectiva, alimentando a esperança de que alguma coisa mude. Garrincha era sábio porque detestava mudanças, fazia o que sabia fazer. E nesse não surpreender, surpreendia.
Cada palavra também pressupõe uma atitude. Não é simplesmente soltá-las ao vento, esperando que cheguem ao seu destino. O perfeito boxeur sabe exatamente onde bater. Estuda meticulosamente o adversário e o distrai com jabs, para finalmente encaixar o soco de baixo para cima na ponta do queixo. É fatal. Não há como ficar de pé. Lembra a implosão de um edifício. Aquela massa informe a cair desajeitadamente. E no chão, a ruína do que um dia foi altivo e belo.
As coisas não são tão simples. Há pouco eu saía do quarto com a história pronta na cabeça. Era sobre um homem desiludido no alto de uma ponte. Um homem sozinho com o mistério da sua existência.
- Que mais posso fazer senão atirar-me nesse rio lodacento.
Pensava o homem no alto da ponte, esperando o momento do desenlace. Já se sentia flutuando no ar depois do salto e tudo se precipitando para baixo numa vertiginosa queda. Ouvia o baque do corpo contra a água, o redemoinho e a lenta descida até o fundo do rio. Provavelmente já deveria estar morto. O impacto seria suficiente para aliviar o peso da vida e libertá-lo definitivamente de todas as suas angústias. A morte.
Passou as mãos nos cabelos ralos como se o gesto fosse suficiente para devolver-lhe a calma. Constatou que as mãos estavam úmidas. Em seguida percebeu que Ele inteiro estava úmido. Suava aos borbotões. Nenhum outro ruído humano abalava o silêncio da noite. Nenhum automóvel se anunciava. Nada que pudesse ser um empecilho ao salto. Nada que pudesse atrapalhar o solitário gesto. Soluçou.
Lembrou-se daquelas pessoas que escolhem as horas mais movimentadas do dia, trepam em um edifício e ficam lá no alto esperando que se forme uma aglomeração na rua. Que chegue o corpo de bombeiros. Que os cinegrafistas se posicionem. Esperam o facho de luz. Os gritos das pessoas apressadas que não querem perder um minuto do espetáculo. No final, desistem de tudo, choram e se lamentam. E voltam satisfeitos para casa depois de se tornarem manchetes de jornais.
Não queria para si esse espetáculo. Por isso, escolheu a hora mais apropriada, a ponte mais alta e o local mais deserto. Até o ponto do salto foi cuidadosamente estudado. Próximo a uma viga bem larga, de modo que Ele dificilmente poderia ser notado por alguém. Ali ficaria minutos, horas e ninguém o aborreceria. Se quisesse poderia optar por outra forma alternativa de morte naquele mesmo local. Tocou a cintura e sentiu o cabo volumoso do trinta e oito que comprara pela manhã. Um tiro na cabeça na beira da amurada provavelmente projetaria o corpo no espaço. Seria um duplo suicídio em um mesmo ato. O tiro e a queda.
O homem no alto da ponte carrega consigo uma história. Amigos, família e uma sucessão de fatos que compartilhou com outras pessoas. Carrega recordações felizes, tristezas, desenganos, erros e acertos. Não é diferente de muita gente. Tem o número de uma identidade, o registro de nascimento. Quando tudo se consumar será lembrado pelo tresloucado gesto. Todos irão indagar as razões que o levaram a tal ato. Dirão que Ele não tinha motivos aparentes. Não estava desempregado. Possuía uma vida organizada. Não bebia. Não era viciado em nenhum tipo de droga.
A interrogação descerá junto com o corpo e repousará no fundo do rio.
A história teria sido essa. Mas as coisas não são tão simples assim. Não se pode contar uma história impunemente.

A ÁRVORE DO ESQUECIMENTO

“... além dos estados líquidos e sólidos, porque não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso?!”
Guimarães Rosa

Conta-se que os nativos africanos capturados para se tornarem escravos na América eram submetidos a um ritual que consistia em dar voltas em torno de uma árvore. Os homens davam nove voltas enquanto as mulheres davam sete voltas. O ritual, segundo a cultura local, servia para que os futuros escravos esquecessem as suas origens. Assim, eles não amaldiçoariam as embarcações durante as longas viagens e tampouco se rebelariam contra a situação de opressão. A árvore utilizada para o ritual ficou denominada de “a árvore do esquecimento”.
Recordo esse fato porque ele se relaciona com a nossa história. Também eu ando a dar voltas tentando esquecer o passado. Mas, como acontecia com os escravos, não há como apagar a memória de uma existência. Ainda mais quando ela se impregna por todo o corpo, reaparece sob diversas formas, e surge nos momentos mais inesperados.
Vou citar alguns exemplos. Olhando pela janela do metrô tenho a impressão de que você está no meio dos rostos aflitos que não conseguiram embarcar na estação. O metrô está partindo e você ficando para trás. Outra tortura constante está nas ruas. Tem sempre uma mulher de costas acendendo o cigarro com o mesmo gesto característico. Quando me aproximo e vou tocar-lhe as costas, ela vira-se. Não é você. Uma até chegou a sorrir e perguntou-me se queria fumar. Era extremamente simpática. E tinha os cabelos ondulados que tanto gosto. Mas o desconcerto foi tamanho que fugi desesperado. O fato é que me tornei cativo do teu amor.
Tentei convocar a legião de pessoas que vivem no mesmo estado de opressão que o meu. A idéia era formar o Exército de Libertação do Mal do Amor, o ELMA. Mas foram poucos os que se dispuseram a participar de tal empreitada. E mesmo esses poucos, logo depois se viram assaltados por uma outra paixão e acreditaram estar livres do jugo amoroso. Mal sabem eles que apenas trocaram de feitor. Apenas uns dois ou três, incluindo-me na contabilidade, mantiveram-se fiéis ao seus desafetos da paixão.
Fiéis não é o termo exato. Vício deve ser mais apropriado. Continuamos viciados na rotina de uma outra pessoa. No desenho de um mesmo corpo. Na voz, no cheiro, no toque. Visceralmente dependentes.
Outro dia acordei sobressaltado, acreditando que você estava ao meu lado. Acendi a luz do quarto, percorri desesperado todos os cômodos da casa até chegar a triste constatação da ausência. Como um menino acuado e com medo chorei. Depois, refeito, escutei o disco de Curtis Mayfield que você mais gostava. O velho LP de vinil com People get ready. Li os poemas de Fernando Pessoa que você, como que para apoderar-se de tudo quanto era meu, grifava com marcadores de texto coloridos.
Graças a Deus comprei livros novos. Neles estou livre dos malditos marcadores coloridos. Mas você teima sempre em se anunciar no final de uma narrativa. Alguém disse que todos os enredos se resumem basicamente a quatro situações. Então não há como fugir. Nossa história está presente na maioria dos livros. Aliás, como frisou Maupassant, “o amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo”. Acredito que seria tarefa inútil recompô-la nessas poucas páginas. Não acrescentaria nada. Busco apenas uma espécie de exorcismo amoroso. Escrevo para libertar-me de você.